Soncent

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terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A burguesa - inédito fresquinho

(Vinha inventar qualquer coisa para escrever. Mas encarnou nos meus dedos o espírito de um velhote e o que saiu foi isto. Se eu fosse mística, escreveria um par de romances!)


A burguesa que gostava de escrever começou a escrever coisas cada vez mais sem sentido. Muito esquisitas. Eu li-as todas e gostava, mas eram tão estranhas! Comecei a pensar: ela está louca. Está a ir-se embora montada num tapete de Arraiolos de feira! Depois dizia-me que não me retivesse nas palavras, mas no som, na musicalidade das frases.

Passou a gravar as suas composições e punha-me a ouvir. Eram musicais, sim, porque ela as gravava com fundo de música. Eu era o velhote impotente sentado na cadeira de baloiço no quintal, debaixo da macieira, a ouvir composições da burguesa. E ao mesmo tempo, eu era o moçoilo que montava na vespa e saía pelas ruas a assustar as meninas e os cães deitados na calçada. Eu era o piloto de ATR's que ficava bem dentro do uniforme e tinha atrás 15 (quinze) moças casadoiras.

A burguesa levantava-se de vez em quando para ir buscar chá gelado e o meu olhar ficava preso no seu robe colorido. Muito gostava a burguesa de ramagens. Perguntava-me, nesses torpores em que caía, como podia alguém ter tão mau gosto para a casa e para as roupas, mas escrever tão bem, ter unhas tão arranjadas e dar-se bem comigo. Pior seria chegar à velhice e já não ter dúvidas nenhumas...

Vira e mexe, a burguesa aparecia com umas equimoses nos braços. Quando fiz olhos de peixe morto à empregada, fiquei a saber que a burguesa gostava de umas coisas mais duras. Eu que a julgara uma palaciana! Recebia-me sempre de manhã. Mas à tarde, quem iria sentar-se na minha cadeira? O que começou com um levantar de sobrancelha enquanto eu trocava de cassete, passou a ser uma pulga atrás da minha orelha: quem é que senta na minha cadeira quando cá não estou? Passei a olhar para a burguesa com outros olhos. O cuidado com as unhas, para quê? Os robes entreabertos?

Enfurecia-me agora com qualquer coisa. Comecei a precisar de ir mais vazes à casa de banho e tornei-me criativo nos caminhos que escolhia. Via sala, via quarto, via armário, via guarda-fatos. Na secretária onde ela se sentava a escrever havia um quadro com vários nomes. Eu soube logo que lá pousei os olhos. Não havia espaço nenhum para dúvidas. Eu não era o Solteirão, o Viciado, O Vândalo. Não. Eu era o Eunuco.

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