A primeira vez que fui lá ter foi por acaso. Tinha saído a passear num dia de muito vento, levando pela trela o cachorro da vizinha, que se soltou e entrou pelo portão. Entrei atrás, gritando que nem louca pelo seu ridículo nome: Piupiu.
É complicado explicar a origem do nome, mas também não interessa. Portão dentro estava um outro cão enorme, que em vez de se pôr a cheirar o Piupiu, se deixou ficar sentado sobre as patas traseiras, olhando apenas para o prato à sua frente. Continha açúcar. Um monte branco de açúcar, brilhando ao sol. Estranhei, claro. Quem é que dava açúcar a comer a um cão?
Não levei muito tempo a saber. Atrás do que parecia ser um biombo de ferro estava uma senhora que devia ter pelo menos cem anos. Tinha um ralo cabelo muito amarelo na cabeça, a cara muito enrugada e escurecida, o corpo mirrado e muito magro. A expressão dos olhos traía uma possível loucura. A da boca, uma possível bondade. Sorriu para mim, mostrando uma dentadura perfeita. No entanto, não falou. Eu murmurei um bom dia e vim atrás do meu cão mas não me demoro mas ela ficou só sorrindo para mim.
Quando Piupiu se aproximou, ela estendeu-lhe a mão muito velha e passou-lha pelos pêlos. Pude ver o pêlo dele eriçar-se, mas deixou-se estar. Eu mordia a pergunta sobre o açúcar. O outro cão olhava para mim e para o açúcar. Juro que ele parecia pedir-me que o levasse de lá, lhe desse comida a sério e lhe explicasse como era que esta senhora tinha aparecido na sua vida. Pensei rapidamente que poderia pegar-lhe pela trela e correr, porque não haveria modo nenhum de aquele corpo quase putrefacto conseguir 1: apanhar-me, 2: gritar alto o suficiente para que alguém a ouvisse.
Foi o que fiz.
Mas não contava com a súbita cobardia do bicho: resistiu a ser puxado e ladrou para mim, quase me mordendo a mão. Eu estava lixada e olhei para a velha senhora a medo. Se ela se apercebeu do que eu tinha querido fazer, não deu mostras. Foi para dentro de um casinhoto mesmo ao lado, voltou com um pequeno quadro negro e um giz e escreveu, numa letra muito tremida, que o cão sabia muito bem por que era que lhe tinha servido açúcar. E que eu não me tentasse meter, que ele saberia honrar o compromisso deles. Ela não me disse qual o teor desse compromisso, mas vocês pensam que eu fiquei lá para saber?
Dei meia volta, como quem ignora um louco na rua e vim embora. Isso foi nesse dia. Se fosse agora, eu detinha-me mais, pensando que já não há pessoas que honrem compromissos nenhuns, que dêem valor à palavra, às expectativas dos outros. Se calhar a senhora nem era louca. Se calhar, houve uma razão qualquer para ela ter começado a dar açúcar ao cão. Até consigo imaginar algumas: que ele só gostasse de coisas doces e ela quisesse dar-lhe uma lição. Que ele andasse sempre atrás do açucareiro e ela quisesse dar-lhe uma lição. Que ela tivesse sonhado ver na cara do bicho, tal como eu vi, que ele reclamava da vida muita amarga e ela quisesse adoçar-lha.
Bom, eu, claro lá voltei. Mas parece mentira, mas não havia sinal de lá terem estado alguma vez. É pena que Piupiu não me possa confirmar, porque agora estou na dúvida se sonhei….
2003
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