Soncent

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segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Roubem - um inédito dedicado a AP, pelo bom conselho

Surjam de madrugada, num barco silencioso, entrem pela mansão e roubem-na inteira. Levem tudo, mesmo o que parecer pesado demais para ser carregado. Lancem mão aos quadros, que custaram e valem uma fortuna. Levem até as cortinas, soberanas cortinas! Arranquem os fios da parede, desalojem as loiças de faiança e as da china. Dos descobrimentos, da melhor loiça portuguesa com brasões. A loiça da Vista Alegre também, da qual a minha mulher tanto gostava. O compadre dela ofereceu-lha toda, a cada natal, aniversário, promoção… levem os sofás, por amor de Deus! Encardidos uns, novos outros.
O que sei é que, de manhã, quero encontrar a mansão vazia, vazia. Só paredes e sem memórias. Nem um gira-discos onde tocar uma ária da saudade. Nem um espelho onde rever a minha cara de viúvo. Nem mesmo um postigo onde me pudesse lembrar de me encostar, para chorar. Tornem-na inabitável, por favor. Façam dela um sítio onde nunca se poderia imaginar que houve vida, nem sorrisos, nem pianolas, colecções de selos ou caçarolas.
Que estou a fazer? Até na maior tristeza, consigo rimar! Isto é dos poemas que sobraram, dos poemas que eram para ela e não tive tempo! E ainda restam tantas músicas que não pude entoar porque ela foi cedo demais. Muito mais cedo do que um homem julga que vai perder a mulher. Homem nenhum deveria sobreviver à mulher assim como os pais não devem sobreviver aos filhos. Eu nem sei chorar, ando por cá a inventar choros, sai-me uma coisa esquisita, mas tem que ser, se não chorar, estouro. Por mim, até levavam o soalho, substituíam tudo por mosaico, Moisés ou azulejos, tanto se me dá. Por mim, mudavam, numa noite só, a tinta das paredes. Por mim, atiravam com a mansão para o chão, se querem saber! Faziam destes hectares um campo de macieiras com uma rede onde um pobre viúvo se pudesse deitar.
Por mim, ficavam vocês com a mansão e a mim, enterravam-me junto com ela. Mas já que não pode ser, já que há herdeiros que mais parecem uns perdigueiros, roubem-na. Deixo as portas abertas, facilito com luzes acesas e até escrevo cartazes, se for preciso. Roubem tudo. Só tenho pedido: comecem pelas minhas memórias!

2 comentários:

Anónimo disse...

É bom saber que de alguma forma se foi útil...
Fico feliz...mesmo!

“Quem sabe faz
Quem não sabe ensina
Quem nem isso sabe fazer, critica...”

Nunca te esqueças disto ao longo da tua , mais que certa, carreira literária ;-)

Já agora, obrigado pela dedicatória.

Anónimo disse...

É bom saber que de alguma forma se foi útil...
Fico feliz...mesmo!

“Quem sabe faz
Quem não sabe ensina
Quem nem isso sabe fazer, critica...”

Nunca te esqueças disto ao longo da tua , mais que certa, carreira literária ;-)

Já agora, obrigado pela dedicatória.