Soncent

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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Autora estreante

E enchi páginas inteiras de histórias, de choros, de lérias baratas inventadas na hora, outras ouvidas de algum lado, lugares comuns mil vezes repetidos e agora um pouquinho envernizados, um nada modificados.

Dei por pronta a obra, murmurando “magnífica” e fui entregá-la, tal tesouro recém-descoberto, às mãos do intermediário.

Era um escritório vasto, mal cuidado, com ares de servir para muita coisa para além da actividade do meu intermediário: havia umas quatro secretárias, espalhadas pelas esquinas, e perto, sofás ocupados por gente aparentemente desocupada, embora com pastas de cabedal ao pé. Pareciam gente que já tinha sido alguém, mas que entretanto se tornaram ninguém e nem sabiam como.

Sentei-me no sofá que ficava mais próximo de uma porta com o nome do intermediário e mirei os outros personagens que pareciam esperar pelo mesmo que eu. Quando já tinha reparado em todos os pormenores que indicavam a sua decadência, ouvi um monólogo bem interessante, de um jovem bem parecido, que fingia conversar com uma moça barbuda num vertido colorido:

- Comecei por tentar um romance, depois descobri que tinha mais jeito para os contos. Agora consigo dizer tudo numa ou duas frases. Pu-las todas em páginas, num género simplista e despojado e chamei à compilação, Pares de Parágrafos. Lês e tens espaço para imaginar os contextos, o mood, como diz o inglês. Sabes, eu andava a sonhar ser um grande escritor, mas tenho demasiados defeitos.

"Encontrei depois uma copy-writer muito boa, que me reescrevia os textos, cortava redundâncias sem fim e advérbios demasiados. Depois ela desistiu e eu também. Quando eu lia o texto, não sabia de haveria de rir ou chorar. Ficava bom, ficava brilhante, eram as minhas ideias, mas não era meu, o texto… tão trabalhado, elaborado, sofisticado… tão bom como eu nunca conseguiria escrever sozinho.

"Mas o golpe final, quem o deu foi ela, porque, mesmo não sentindo os textos como verdadeiramente meus, eu não conseguia abrir mão da moça. Na altura, eu tinha um bocado de dinheiro para gastar… mas um dia ela despediu-se, disse que de tanto ler a minha arte, perdera a arte dela própria, perdera o encanto de criar… eu sequer soubera alguma vez que ela própria escrevia, julgara que era das pessoas que trabalham bem mas não criam… bom, o facto é que, em poucas frases, não dá para ser redundante e sempre digo o que quero…”

Entretanto chamaram por mim e entrei. Nervosa e agitada como uma bandeira ao vento de Dezembro.

Comecei por me zangar, porque, contrastando com a minha reverência quanto ao documento que trazia abraçado ao peito, o intermediário recebeu-o como se do jornal do dia anterior se tratasse, pô-lo debaixo de um monte de outros calhamaços que o meu egoísmo de autora estreante não me deixou cogitar que tinham sido entregues com igual orgulho e ansiedade e fui logo brigando com ele, então é lá que me enfia a obra, ele, já certamente acostumado aos chiliques e achaques, disse, “Não se preocupe, que tiramos os de baixo primeiro”.

Sosseguei-me logo, tal burro a que tapam a vista e fui-me embora feliz da vida, cantando pelo caminho. E imaginando, claro, a secção de autógrafos, a contra-capa, os comentários nas páginas culturais… e os prémios literários que choveriam sobre mim. E imagina o rapaz dos “Pares de Parágrafos” e vir pedir-me autógrafos também, quando se desse conta que, com frases, ele não iria a sítio nenhum.

Sentei-me à espera de Dezembro, veio cheio de frio, foi cheio de prendas, Janeiro entrou pobre, Fevereiro passou alegre com o seu Carnaval mas resposta nenhuma veio da editora. Em Maio, o intermediário disse-me que só me conseguira uma edição conjunta com um jovem promissor, muito bom, com uma escrita muito sucinta e objectiva, de grande leveza. Agora, tenho na minha estante o livrinho de bolso “Pares de Parágrafos” que é uma colecção de contos meio chunga intermediados por umas frases elaboradas onde o meu companheiro de estreia diz tudo o que quer.



Data: Um vêz/sei lá/Diazá

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