Aqui há umas semanas, fui uma dos coapresentadores, na
Assomada. Como sempre, falei pouco. Ufa, ainda bem, porque dos outros não se
pode dizer a mesma coisa, à exceção do Arménio, que não falou de todo.
Foi assim:
“Pois é, madame, este é o leite de cobra mais fresco que
encontrará no mercado.” Cito de cabeça.
Foi este o “poema” que Arménio Vieira enviou para a
coletânea de poesia chamada Destino di Bai que reuniu, em 2009, poesia inédita
de Cabo Verde. Eu já não sei que poemas publiquei nesse livro; mas desta frase
do Arménio não me esqueci, por ser tão curta e ao mesmo tempo, tão plena de
humor, de audácia, por ser tão inesperada num livro de poesia. Ora, extrapolem,
multipliquem, elaborem.
Arménio extrapolou, multiplicou, elaborou, escreveu. E é
assim que nos surge este Fantasmas e
Fantasias do Brumário. Surge desconcertante, surpreendente, arménico. O
Fantasmas e Fantasias do Brumário é um livro de diálogo, diálogo com autores,
uns consagrados, outros menos; uma conversa com figuras históricas, reais e
ficcionais. À primeira vista, parecem devaneios, histórias que surgiram na
ponta da caneta quando por ele passou um guardanapo.
Mas! Ainda que sejam devaneios, que bons que são de se ler,
divertidos, exóticos na sua frescura, uma obra literária que não se encaixa
numa gaveta fácil.
É um livro que questiona fatos históricos ou grandes
ficções, porque sim. É documento da enorme cultura do seu autor, é uma
enciclopédia de leves referências a figuras de peso da antiguidade, do passado
mais recente, da literatura francesa, da inglesa, da portuguesa. Faz bem as
perguntas, atira-as ao éter, à procura da resposta que a nós nos interpela.
Nós, que lemos o livro em alguns pares de horas, que nos deixamos agarrar por
ele, ainda que em alguns trechos franzamos a testa com estranheza, noutras nos
ríamos deleitados. Nunca reagiremos com indiferença.
Vieira conhece estes personagens tão bem que com eles fala
na primeira pessoa, sejam deus ou Eça. Senta-os à sua mesa e nós assistimos,
engalfinhados, de cotovelos apertados uns contra os outros, aos embates entre
os grandes. Como um jogo de xadrez a grande velocidade. Não se detém nem frente
a Shakespeare, nem frente a Jorge Luís Borges. Corrige Camões. Vai de espada em
riste contra Descartes. Quer despir Nietzsche. Esmiúça, com lupa e pinça,
Cervantes. Menciona a infeliz da Joana D’Arc, faz riola com a Papisa Joana.
Descostura a bainha de Ludwig Wittgenstein. Só poupa quem ficou esquecido. É um
duelo de ideias com estas pessoas, que, eu sei porque o ouvi dizer, ele
considera estarem vivas porque a sua arte sobreviveu e está entre nós.
O Poeta não nos deu, com este livro, poemas a ler. Mas é
mais literatura do que parece caber nestas linhas.
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