Soncent
quinta-feira, 13 de dezembro de 2007
Extractos de A GRAVATA, de Eileenístico
(...) O público gosta de mim e eu detesto-o. Na mesma
faço o jogo. Ergo as mãos ao alto e eles seguem-me com os
olhos. Uns e outros chamam-me uma filósofa. A maioria fica-se
por “um embuste!” Imbuída de orgulho e palavras vãs. A questão
principal permanece: sou o homem de gravata ou sou a gravata
do homem? Vou criar um blog para receber as respostas.
(...)
Isto até parece aquela do escritor que queria ser pintor. Mas
por azar, até sabia escrever, pintar é que não. Tinha as paredes
cheias de ilustrações de quadros famosos, pintados por verdadeiros
génios. Génios do abstracto, do cubismo, do impressionismo.
Sim, sim! E ele, o que é que fazia? Escrevia textos abstractos, já
se vê. Perguntam-se vocês: textos abstractos, como assim? É na
verdade complicado, mas ele conseguia. Metia umas frases eruditas,
esquecendo-se no entanto de lhes dar um sentido.
Misturava linguagens e figuras de estilo, deixando de fora a pontuação.
Falava de muita coisa ao mesmo tempo, como se o leitor lhe
estivesse ligado telepaticamente. E sentia-se muito satisfeito quando,
um mês depois de ter escrito um texto, o relia e descobria que
ele mesmo se desconcertava com a imensa abstracção do manuscrito.
E voltava a guardá-lo zelosamente.
(...)
Um dia encontrei o meu pai e estávamos ambos tão velhos
que mais parecíamos um casal caquéctico sentado a uma porta, à
espera da morte. Não sei o que foi que me deu para envelhecer
tanto como ele, que antes me levava tantos anos. Disse-lhe: “Tenho
a cabeça a pingar cabelos. Tenho a testa perlada de gotas de
preocupação. E o meu coração geme enquanto desabriga uns litros
de sangue, movendo-os de um lado para o outro. Tenho cento
e vinte rugas nas costas, de tanto me encolher sobre mim própria, imitando um bicho mitológico.”
Sempre que lhe falava nestas coisas, ele pensava que eu só estava a fazer jogos de palavras, a meter-me com ele, a tentar imitá-lo. Dava-me uma raiva!
Meto a data convulsivamente e engasgo-me com as letras.
Dislexia escrita, é como me poderiam diagnosticar o mal. Ainda
bem que existe o Word. Só nesta frase, já me sublinhou três palavras,
inclusive a palavra “sublinhou”. Se quiser escapar às palavras
sublinhadas, teria que escrever devagar e, devagar, como é
que acompanho o meu pensamento convulsivo? Convulsiva era
a música, e a data metida. Hoje em dia só escrevo assim. Para
ninguém mais entender. E ainda por cima, compulsivamente. Ou
então, é uma procura convulsiva de alguém que entenda. Alguém,
de preferência não compulsivo, mas que me leia compulsivamente.
Sem ser o meu pai, claro está, porque esse já não entende nada.
Há dias escreveu qualquer coisa sobre ter a cabeça a pingar cabelos
e pensou que a frase era dele. Quase que me deserdava, quanto
teimamos sobre a frase. Mandei-o ir pintar bananas, ele percebeu
plantar e falou em falta de respeito. Tive que ir buscar o papel
higiénico para lhe limpar a baba. E convencê-lo também de
que disse “bananas” e não “batatas”. Aliás, ninguém planta bananas.
Mas que escritor percebe de botânica?
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1 comentário:
Vi que mudou Ateia para Ateista. Pessoas sem talento, costumam seguir os bons conselhos. Pode considerar-lhe um presente, e não precisa de me creditarpor isso.
JVL
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