Soncent

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segunda-feira, 6 de junho de 2016

O Casa-café-museu-poético

 
Não digam a ninguém: estou a escrever um romance. Chama-se A Artista. Ninguém irá acreditar, mas não tem rigorosamente nada de auto-biográfico. Tanto mais não seja porque ela, a Artista, poderia ser minha avó.
 
Eis um extracto:
 
"(...) A Artista mungira várias vacas, tinha uns dinheiros que de vez em quando ainda entravam, exatamente quando mais necessitada.
Tinha um amigo que às vezes lhe pagava umas contas da casa. Era o Euclides de Pina. As coisas começaram quando ela foi ter ao escritório dele com um pedido de financiamento para uma casa-museu. Os seus argumentos eram fortes: pintava, possuía uma coleção de objetos absolutamente divinos. Desde que se tornara Artista que amava o fútil, o pueril, e fazia-o de uma forma anárquica, eclética e extravagante.

O Euclides lembrava-se dela quando nova. Lembrava-se que a seguradora dele tinha adquirido vários dos seus quadros, obras formidáveis. Lera os seus livros. Vira os seus programas. O Euclides era um fã da Artista. O que ele não sabia era que dos quadros que ela pintou depois, o público, os críticos, as empregadas, ninguém gostou. Ela não saberia explicar o que tinha mudado. A qualidade das tintas, talvez. Já não se faziam tintas como antigamente.
 
Ele ouvia-a encantado. Ela explicara que colecionava loiças com ramagens lilases, jarros e bules chineses decorativos com ramagens violetas, quadros de pintores de rua, pequenos abajures, gatos de porcelana, peças de marfim, de ébano, de ferro forjado, de cobre, de madeira, de sisal, de prata. Mantinha gavetas de vidro com caixinhas de joias com os seus brincos correspondentes. Compilava poemas, rimas, prosas variadas, ex-maridos, ex-namorados, amantes, feijões coloridos, ferros a vapor, tudo isso, não obrigatoriamente nesta mesma ordem.
Imaginava o cartaz à entrada do seu museu:

 “Bem-vindos ao Casa-Museu-Café-Poético”, pintado a cores aguerridas e seguido de uma foto dela de perfil, segurando uma cigarrilha, seguido de uma curta biografia de três páginas. Nas diversas salas, haveria pequenos textos, escritos por ela, descrevendo a origem dos objetos e o seu significado para a colecionadora. Sabia que os visitantes iriam apreciar o requinte do seu Museu, o seu bom gosto. Também gostava da ideia de ter completos estranhos a percorrer a sua casa, a passar os dedos com leveza sobre as suas colchas, a fantasiar de olhos postos nos seus roupões de cetim dependurados descuidadamente das cadeiras antigas e carunchosas.
 
Serviria chás da India aromatizados com coisas estranhas e originais, como flores de laranjeira, folhas de hortelã e de maracujá, bergamota, canela. Os seus cafés seriam servidos nas suas loiças mais finas, em copos muito altos, com paus de canela e com escolha de uns seis tipos de açúcar diferentes. Acrescentaria bolachinhas de gengibre e pedaços de chocolate negro e guardanapos de quase meio metro, com odor a alfazema.
 
Viriam intelectuais fazer tertúlias. Viriam poetas menores comer de graça e inspirarem-se nos seus próprios poemas. Viriam políticos discutir os futuros do país numa das suas alcovas. Todos eles lhe beijariam a mão e cobiçariam os objetos, os tecidos, os sabores. Ela, inspirada por tanta energia dos visitantes, voltaria a pintar, a cantar. Daria concertos íntimos, só ela e um piano de cauda.
O Euclides não vê a viabilidade financeira de um tal projeto. Sabe fazer contas.
Mas vai patrociná-lo, de certeza absoluta. E vai-se tornar o cliente número um.
 
Tomou depois o hábito de vir visitar o Casa-Café-Museu várias vezes por semana e visto que era uma criatura de hábitos, a Artista já sabia quando esperá-lo, com chá e bolachas. Aproveitava para lhe mostrar as inovações, as decorações e as suas composições. O Euclides julgava que ela andava a rabiscar coisas cada vez mais sem sentido. Muito esquisitas. Ele lia todas e gostava, mas eram tão estranhas! Começou a pensar: ela está louca. Mas ela dizia-lhe que não se retivesse nas palavras, mas no som, na musicalidade das frases.

 Passou a gravar as suas composições e punha-o a ouvir. Eram musicais, sim, porque ela as gravava com fundo de música.
(...)

2 comentários:

gb disse...

Podes levantar o pano um pouquinho mais?... fiquei com água na boca... Bj. GB

Eileen Almeida Barbosa disse...

Poder, posso... mas não era a mesma coisa! hahahahah