Soncent

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sexta-feira, 18 de maio de 2007

Tu és um Português - o conto vencedor em bocados para aumentar o suspense...

Há um corpo que jaz no terraço, na única sombra que desafia o poder do sol. Um corpo abandonado, que já teve mais peso, que já teve mais vida. Laços de sangue, não os tem contigo. Desconhece-te até e pressente-se só. Não se lhe ouvem suspiros e não se lhe vê o peito estremecer quando respira. Se respira. O único sinal de que vive, é que, de quando em quando, se lhe nota um mexer sob as pálpebras, não completamente fechadas. Dir-se-ia que o azul do céu consegue penetrar por entre elas.

Tu és um Português. Ela não tem nacionalidade especial. Fez-se gente nalguma parte mas de momento permanece apenas espuma branca nas tuas ondas.
Tu és um Português. Por ela ser assaz leve, não a sentiste quando pousou sobre ti, pena esvoaçante e sussurrou nos teus ouvidos palavras que só adivinhaste.
Há luto, nojo, na forma como olhas para o corpo sem características físicas precisas, para a boca semiaberta. Trocaste já tudo o que tinhas e sabias, pela hipótese somente de tê-la.
Jaz o corpo de mulher que se fez menina e no seu abandono vês o corpo inconsciente mas tão triste, bem o crês e adivinhas que vais querer debruçar-te sobre ela e beijar os lábios de paz que nunca tocaste. E olharás para ela ansioso e ela nada fará para te acalmar a ânsia de a saber viva e apenas cheia de saudades de ti e crês ver-lhe na expressão a ânsia de te ver, um meio sorriso de quem por ti espera. Não saberás Português, que ela suspirava pela última vez nesse momento, deixando então de fazer parte do nosso mundo.
Tu, Português, que não tinhas poesia na alma para o adivinhar, como se tal fosse permitido de qualquer forma!, deixaste-a como a viste, inerte, e esvoaçaste, pois esfumaras-te e eras apenas o último suspiro por ela exalado.
Na fumarada em que te transformaste, começaste a lembrar-te de como as coisas aconteceram. E devagar, hás-de compreender. Sentiste-te puxado por uma brisa, foste-te afastando do terraço. Já pairavas sobre a rua de Lisboa, misturado com os fumos dos carros, quando te apercebeste desse pequeno café de esquina. E vislumbraste a rapariga que lá esteve, um dia, bebericando um sumo de fruta tropical, segurando um pequeno buldogue na mão. O cão era muito feio, mas divertido e não te contiveste, fizeste um comentário sobre o bicho. Não sabes bem como, mas de repente a conversa já era sobre a colonização portuguesa e vocês não conseguiam entrar em acordo, pelo que a convidaste para um almoço no teu hotel, onde poderiam discutir melhor o tema, ao menos sem os comentários do bêbado de serviço. E ela aceitou, mas fez questão de que o almoço fosse na casa dela, pois tinha deixado um peixe temperado e apimentado, para um assado em que era mestra. E do alto de onde agora pairas, distingues a rua por onde vocês se meteram, a porta da loja onde adquiriste um vinho verde muito bom e ela comprou natas, para a sobremesa. A casa dela, recordas-te, era num alto, pelo que lá de cima se via toda a Baía e tu, entusiasmado, arrependeste-te de não ter trazido a máquina fotográfica. A casa era um encanto, com muita luz, embora pequena. E ela era certamente, um encanto maior. Estavas tão apaixonado que não te terias importado que o peixe só tivesse espinhas. Mas era ela que te mostrava os espinhos, à medida que se apercebia da tua fulminante paixão.

1 comentário:

Anónimo disse...

Dignifico, Fabulastico...