Soncent

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quinta-feira, 31 de maio de 2007

Tu es um portugues - parte V

Separamo-nos outra vez, fui morar com a Ruth, a minha directora. Ela sempre achara a Ruth feiosa e confirmou-o num espectáculo no Hotel Porto Grande, em que passei toda a noite a admirar-lhe a graça do novo corte de cabelo. Mandou-me uma mensagem pelo móvel: "De vez em quando, deve dar-te gozo olhar para uma cara bonita, ou não?" tirava-me do sério, essa maneira de ser… fiquei lá com cara de parvo, completamente vermelho, a olhar para a mensagem no móvel, e ela a rir-se… a Ruth viu a mensagem. Foi aos arames e exigiu-me que escolhesse entre as duas. Escolhi à Ruth, na hora. Fui ter a casa dela no dia seguinte, a porta aberta, mas ela não estava. No tal quadro negro, escrevinhara: "Com que então, regressaste, tal filho pródigo, ao lar? Rejubilo-me com isso, mas é uma surpresa de todo o tamanho!!»
- Mas afinal, vocês separaram-se?
- Bem, várias vezes. Mas o fim, não foi porque quisemos. Ela adoeceu e viajou. Não deu notícias, escrevi-lhe várias cartas. Preocupado, morrendo de preocupação! Recebi uma única, disse apenas: "Desta não morro."
Depois, apercebi-me de que me estava a preparar para alguma notícia menos boa. Fui recebendo sucessivas notas, com frases pequeninas, muito pequeninas… Mas plenas de significado: "Tão complicada nos parece a vida, às vezes."
"Não há dor que se atreva a durar para sempre. Ininterruptamente."
Houve uma carta, mais comprida, com uma foto muito bonita, em que dizia: "Se puserem no meu túmulo a foto em que estou a sorrir numa praia entre a Baia das Gatas e a Praia Grande, toda a gente terá pena por eu ter morrido. Dirão: era tão cheia de vida! Tão bonita! Como é triste morrer! Porque essa foto em si é um hino à vida. Parece foto de gente que já morreu. Parece prova, testemunha, de que o que agora luz e vive, amanhã perece. Amanhã pereceu."
Eu não aguentava mais, tinha que a ir ver, embora nem tivesse os meios… era a realidade a cortar com os laços entre nós… quando é que a Ruth me daria licença para ir ver a Janice? "Deixem-me chorar no papel pois não o consigo fazer pelos olhos e a alma transborda-me de água salobra." Esta veio num postal. E esta, noutro: "É agora que grito por socorro?"
Larguei tudo e fui ter com ela. Estava um farrapo, fazia quimioterapia, tinha um cancro que parecia um dragoeiro… percebi que se decidira a abandonar os tratamentos quando me escreveu "Vamos dar tiros de discórdia, aqui nos rebelamos nós." Voltámos juntos, ela mal se sustinha. Viera morrer a casa. Continuava a declarar-se-me: "Eu não poderia sentir algo tão forte se não estivesse de alguma forma estabelecido que ficaremos juntos. É essa certeza que quero que tenhas."
Continuava com o humor de sempre. Se lhe ajeitava a almofada, se lhe coçava o pé, murmurava: "Às vezes, basta um muito pequeno conforto para que nos sintamos reis!" era incrível… disse-lhe uma vez uma frasezinha que a fez sorrir e dizer que ela é que a deveria ter dito… era assim: "As frases que me dizes parecem ser pensamentos e nunca, sons." E respondeu-me: "Achei que se escrevesse uma carta cheia de pujantes declarações de amor, afecto e dedicação, sentir-me-ia mais leve e tranquila. É o que tenho tentado fazer…escrever uma carta… de amor." E eu, que não tinha jeito nenhum para lhe dizer tudo o que me ía na alma…
Já no fim, fez-me uma vez um coração, meio tremido, no bloco. E escreveu, por baixo: "Já me conheces a veia poética? É essa aí, esparramada no papel…»
Dessa vez parece que esse interlocutor acreditou, Português. És bom. Viste até um brilho de lágrimas a aparecer-lhe nos olhos, de pura comoção, tal como vês tantas vezes nos olhos dos crioulos que vais encontrando por essa Lisboa e a quem falas do Mindelo, dizes que vieste de lá há dias e dependendo da época, dizes que estava verdinha, verdinha, nem parecia a mesma cidade ou dizes que o Natal e o final do ano foram os melhores da década, que animação, e tanta gente!, ou dizes ainda que o Carnaval só podia ser comparado aos dos anos noventa, a segurança com que falas não dá para deixar adivinhar que tu nunca os viste, a nenhum Carnaval dos noventa, que sabes tu?, mas eles não sabem, não podiam saber e os seus olhos ficam assim brilhantes de saudades e dor tal como estão agora os olhos deste à tua frente.

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