Lá de onde dissera que vinha, nunca vivera ninguém. Mentia pois e não mais lhe demos ouvidos. Era conhecido entre nós por ter escrito a crítica do livro que mais gostáramos. Mas de resto, nunca o tínhamos visto e bem podia estar a usar o nome roubado de algures. Do livro, talvez. Deixei cair, como quem não queria a coisa, o nome do autor, para ver se ele se revelava mas a sua reacção foi tão inconclusiva que não o pudemos julgar. Falou-nos depois de uma kasba em que vivera durante quase um ano, encerrado numa sela e só comendo pão de milho e leite de cabra. Mentia descaradamente, foi o que concluímos.
Tínhamos o nosso grupo em que as opiniões do Paulo e do Júpiter sempre imperavam, pelo que não nos preocupamos por fazer o nosso próprio julgamento. Era mentiroso e decidimos deixá-lo no meio do deserto, para que morresse à mingua e nem lhe deixámos uma única garrafa de água, porque, tal como disse o Júpiter, seria desperdiçar água com um morto.
Nem acredito agora na crueldade que conseguimos cometer nesse dia. Gostava de dizer que o tornámos a ver, num carro que chegou depois do nosso, mas não chegaram nenhuns durante três longos dias. Eu sei, porque me pus de guarda junto ao posto de gasolina, o sítio obrigatório para qualquer carro que tivesse acabado de atravessar o deserto. Numa rendia-me de vez em quando e foi numa dessas vezes que ele me disse que o livro que gostaria realmente de escrever seria contra deus. Seria um livro em que reuniria todas as correntes que já houve sobre ele, ordenadas e comentadas e o livro seria tão bem fundamentado que não restaria nenhuma outra saída do que admitir, sem mais margens para dúvida, de que tal entidade não poderá nunca ter existido. Pelo menos, fora da cabeça do humano. Lembro-me que me disse isto à tardinha, quando o sol se punha, enorme no céu e essa sensação de poder e tamanho do céu não me deixou levá-lo a sério.
Mas quando ao quarto dia, apareceu um jeep com o corpo do morto na parte de trás, lembrei-me das palavras dele e acreditei que, se de facto existisse um deus, ele não teria permitido que ele tivesse morrido lá e que nos pesasse nas costas agora, um assassinato a sangue frio. Éramos todos cúmplices, nenhum de nós levantou a voz, ou sequer a sobrancelha, para dizer: vamo-nos apertar e levar este homem.
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