Soncent

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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Mariana - Parte III

(...)

– É verdade. Muitas vezes quis dizer-lhe que preferia passar a dormir no quarto de hóspedes e só não o faz porque esse quarto é o mais quente da casa. Prefere que seja ela a dar-se conta de que o incomoda todas as vezes que o despertador toca e que, em consequência, seja quem sugira essa mudança.

Também é verdade que os abraços à noite o acordam e que depois lhe custa voltar a adormecer. Mas que lhe poderá dizer?

- Nem sei o que te dizer, Mariana. É verdade que ando a dormir mal, e sinto-me cansado de dia por causa disso. Se calhar o meu sono já não é igual.

- Não, o que já não é igual é o nosso amor, é o nosso casamento. Daqui a nada, se calhar, arranjas outra Mariana com quem vais passar a noite e só passas a cá vir para as refeições.

- Os anos passam para mim também… – cala-se e olha para longe, e Mariana dá-se conta, nesse exacto momento, que ele tem razão, que os anos passaram e que ele parece agora quase um velho, não sabe como, se nunca antes se tinha dado conta disso.

Anos atrás, quando se casaram, já ele tinha filhos crescidos, já tinha vivido uma vida. Agora, ei-lo, de cabelos brancos, costas abauladas e peludas, pele sem viço.

Estava casada com um velhote e na mesma, perseguia-a o fantasma de uma amante, de uma amante que o roubasse tal como ela fizera. Que a deixasse sozinha com a filha.

Pensou então, pela primeira vez, em Guiomar, a esposa abandonada. Como devia ter sofrido! Na manhã seguinte, quando se senta à frente da melhor amiga, Anabela, e lhe conta o que se passara na noite anterior, esta diz-lhe:

- Quando nos conseguimos pôr no lugar da mulher abandonada pelo nosso companheiro e sentirmos pena dela, é porque a paixão acabou.
- Achas?

- É o que me diz a experiência… enquanto estás apaixonada, das duas uma: ou o egoísmo da paixão simplesmente não te deixa olhar à volta ou achas que a ex é uma bruxa que não merece qualquer bom pensamento. Mas se já sentes um certo distanciamento, aí já te colocas no lugar dela e pensas “Coitada! Como deve ter sofrido!”
- Mas eu ainda o amo!

- Não te estou a dizer que não… só falei em paixão. O amor é o que vem depois, é o que fica. É o restinho de comida no prato... hahahaha

- Hahaha! -Mariana ri-se mas depois o rosto desfigura-se-lhe numa careta triste. -Tu também! Sabes, olhei para ele naquele sofá e pareceu-me tão velho! Pensei “Estou casada com um velho!” Se calhar, da próxima vez que me vir ao espelho, também verei uma velhota…

- Ah, então e a diferença de idades que vocês têm!
- Sei lá… acho que estou só chocada com o que descobri. E com o facto de ter estado sempre aí à minha frente. Não foi como se tivesse feito uma viagem, e reparasse nele quando voltasse com olhos lavados de um outro país. Fico a pensar: desde quando é que ele está assim? O que é que me fez reparar só agora?

- Mas tu própria o disseste: foi quando ele te disse que o tempo andava a passar!
- Tens razão. Nesse momento olhei para ele de forma diferente. Mas isso não muda nada, claro! Ele está um velhote mas continuo a gostar dele. – Mariana olha para longe, para além da rua que se vê da janela.

E Anabela olha à volta da casa. Sempre gostou da casa de Mariana, ampla, toda azul e branca. Lembra-se então de como Mariana costumava ser, quando eram ainda mocinhas. Que diferença! Mariana tornara-se numa burguesa, ela que teria combatido o mundo e as suas regras há vinte anos. Ela que tinha tanta raiva dentro de si.

E Anabela olha para si própria: não se teria ela também convertido numa velha burguesa? A entrada da Maragareth, a filha de Mariana interropeu-lhe os seus pensamentos. Como estava grande! Estava uma mulher, já. Como é que não tinha reparado? E olha para as próprias mãos. Mãos de velha. Sorri e aperta a mão de Mariana.


FIM

2 comentários:

Sofia Fonseca disse...

gostei :)

Eileen Almeida Barbosa disse...

Obrigada, Sofia. É bom ter um feedback de quando em vez.