Soncent

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terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Esqueçam-me

Esqueçam-me nas horas que vieram, nos meses que se seguirem, nos anos que se alongarem, tirem-me o retrato da parede e fechem as janelas, para que a luz não vos perturbe nem vos traga memórias de tempos mais alegres. Varram-me as parcas lembranças, embrulhem os lençóis que me pertenceram, ponham atrás da porta o que noutros sítios não couber. E vistam-me uma mortalha, bem preta e feia, desfeiem-me as expressões e exagerem no formol. Escolham as melodias das mais tristes ou então os discos mais cacofónicos e riscados, que me desfeiem ainda mais no meu esquife de tons roxos e lilases, um tudo-nada curto, um tudo-nada apertado, para que eu pareça informe.

Escolham as flores mais melancólicas e tristes, as mais malcheirosas para que ninguém se me queira aproximar. Vão andando depressa e mantenham pequeno o séquito que vos acompanha neste meu enterro. Neste teatro em que vocês fingem ter saudades. Cavem bem fundo, bem mais do que seria necessário, bem mais do que eu haveria de querer. E cubram-me com mais cal, mais terra, mais barro, para bem me cimentar e não deixar nenhuma fresta, por mais pequena, que me permita voltar. E, como se não bastasse, construam logo sobre mim uma laje de betão. E dêem as costas, aliviados, tranquem as portas do cemitério e deixem-me para trás, morta.

Tirem a boca-de-morto, abusem do grogue, falem mal dos meus ridículos hábitos, das minhas músicas esquisitas, das minhas roupas psicadélicas, dos meus tiques de louca, das minhas simpatias vãs, dos meus carinhos desastrados, falem muito mal de mim e esqueçam-me no instante seguinte, sem tristeza, sem saudades, sem admiração, sem força de vontade.
E ignorem um ou outro que se lembrar de mim com alguma bonomia. Não ouçam o piano que se puser a tocar sozinho por me sentir a falta, nem olhem para as telas brancas onde começarem a surgir traços coloridos que lembrarão os meus traços, os que eu fazia a pincel e os do meu rosto.
Queimem as toalhas por onde o meu cheiro tiver ficado, afastem os bebés que eu tiver parido. Vão em cada registo apagar o meu nome, façam-me desaparecer dos anais da cidade, das citações em livros, das fotos em revistas. Por fim, encontrem quem me pariu e convençam-na também que não existi. Por fim, encontrem quem me amou e digam-lhe que nunca existi. E façam-lhe o mesmo que a mim. Cavem fundo um buraco tão grande como o meu, atirem-no lá para dentro e tapem com betão e eu o receberei com honras de estado e de odalisca. E eu o animarei com artes de bobo da corte e de gueixa nipónica. E cuidarei dele com desvelos de mãe e de guarda-costas e amá-lo-ei com a paixão da fé e da luxúria. E depois de muito tempo, ambos já vos teremos esquecido, a vós e à vossa ignomínia. Ambos já vos teremos perdoado, ambos já teremos esquecido as pragas que vos rogámos. Esqueçam-me.

Esqueçam-me de tal forma que, daqui a cem anos, não apareça nenhum historiador curioso a tentar saber o que foi que fiz de tão errado para merecer ser tratada assim. Calem-me a voz, silenciem-me os gestos, tapem-me a expressão dos olhos, os esgares da boca, os franzires da testa, envenenem-me, matem-me. E vivam. Sobrevivam, se puderem. Sem remorsos, pesadelos, calafrios, palpitações, sustos, fantasmas. Apliquem mais uma camada de betão junto à minha campa.

E convençam também aos vossos filhos, que fizeram o bem. E não lhes respondam quando quiserem saber o que foi que fiz. E vivam. Se puderem.



26 de Outubro de 2006

7 comentários:

Mário Vaz Almeida disse...

Este texto é de arrepiar, Eileen!

Eileen Almeida Barbosa disse...

Oh Almeida, engraçado que estava exactamente no teu blog quando vi que tinha um comentário.
É de arrepiar então? Arrepia-te!
hahahaha
Beijo!

Anónimo disse...

Este lado negro "parece" muito pouco o teu estilo. Mas fica-te bem. Quem sabe não devessses tê-lo explorado ainda mais. O que eu detesto no teu blogue? As cores e as flores. Isso sim, arrepia-me. Paint it black!!!!
Isto deverá interessar-te:
http://gilsonversusportugal.blogspot.com/

Anónimo disse...

Tens de admitir E. que só tens um crítico à tua escrita, que está engajado contigo numa dialética de como o que tu escreves deveria ser igual ou diferente. Podes nunca vir a confirmá-lo, contudo só tens tido um verdadeiro leitor. E isso já é muito. Um escritor, para ser um ecritor à serio, tem de ter um verdadeiro leitor. Non Legor Non Legar é a minha crítica e a minha motivação literária favorita. Tens uma alma gémea, rapariga (uma espécie de Sartre e Beauvoir). Acredita-me. É uma pena que o mundo vos tenha emurado para sempre. Que trágico.

Eileen Almeida Barbosa disse...

Tens que admitir, Gilson, que não tens sido propriamente um crítico mas sim um mandador de bocas, algumas foleiras até, que graciosamente, vou poupando aos leitores.

Tens ainda que admitir o número de vezes por que te fizeste passar por outros para vires cá, mais uma vez... mandar bocas e criar falsos casos, falsas paixões, falsas almas gémeas.

Tu queres o blog a preto, eu sou toda cor.

Instead of painting it black, you're welcome not to come back!

Cheers!

Anónimo disse...

Gilson Quem?!!!! Eileen, acho que nao estás bem. Parece que estás a falar com personagens imaginárias. Importas-te de nos informar de q Gilson estás a falar e mostrar-nos as provas desses insultos? Gilson há muitos

Eileen Almeida Barbosa disse...

Mas só tu, Gilson, é que te sentiste tocado pelo meu comentário...
Não queiras que te exponha... não ias gostar.