Agora que vieste de novo, que voltaste por causa dela, que subiste a correr pela encosta e chegaste perto, viste o amor dela a descer as escadas da casa. E ele, olhando para ti, disse-te "Ela merecia." Tu não compreendeste. Pensaste que ele te dizia na cara que ela merecia a doença. Bateste-lhe. Várias vezes, bateste-lhe com a tua mala de viajante, bateste-lhe, deste-lhe com os pés. As pessoas que perto estavam olhavam todas para vocês mas não intervieram. Só paraste porque querias mesmo era subir, vê-la. E lá estava ela. Jazendo no terraço. Na única sombra que desafiava o poder do sol. E desde esse dia que vagueias pela cidade. Feito fumaça. Ela morreu.
Passaram-se vários anos, vês do alto o enterro dela. O Níquel tem-te mantido, como uma ventoinha, empurrando-te para uma cama em cima da qual pairas toda a noite, empurrando-te para um prato de comida sobre o qual dás voltas como uma bruxa montada numa vassoura electrónica. Leva-te agora no enterro, não fazes ideia de como te consegue agarrar, és fumo. Mas o certo é que vais preso a ele, no meio de imensa gente que quis vir prestar o último tributo à tua amada. O vizinho dela cá vai, chorando copiosamente, agarrado a uma das melhores amigas. Vai muita gente a chorar, se tivesses olhos choravas também. De certeza que sim. Olhas para o lado, vão dois rapazes que troçam de qualquer coisa e tentam esconder o riso. És fumo, tentas acertar num deles mas não consegues. Níquel arranja maneira de te conter, de te puxar para perto de si. Os dois rapazes afastam-se, olhando ainda para o sitio onde deves estar. É estranho que te consigam ver. Se calhar és um fumo escuro, mais do que o do tabaco. Ah, que vontade tens, subitamente, de fumar um cigarro. Olhas para o Níquel, se tivesses dedos, terias feito o sinal de quem segura um cigarro entre eles. Fazes o sinal na mesma, só para ver se consegues e ficas maravilhado porque de facto o Níquel mete a mão no bolso e estende-te um maço, depois retira ele mesmo o cigarro e acende-o por ti. E tens medo. Tens medo de te confundires na fumaça que ele deita pela boca. Lembras-te que era engraçado que Níquel nunca conseguia deitar o fumo pelo nariz. Parece que te riste, pois consegues ouvi-lo, ainda que mal, a dizer-te que é a primeira vez que sorris desde há dois dias, quando a Janice morreu.
Janice? Então ela tinha nome, então era conhecida por tanta gente? Sentes-te agora mais esfumado que nunca. Vagamente te apercebes que já se passaram os portões azuis do cemitério e de repente dás por ti no meio de imensas campas, e sentes-te mal, mal, mal, cada vez mais vago, mais esbatido, até que não sentes completamente nada. Deves ter morrido também, que alegria. Pereceste por amor, que tristeza mais linda! Que tragédia mais comovente, a do Português que veio morrer de amor por uma mulher nascida de uma concha que o mar depositou na areia! Estás perdido nesse pensamento, crês que encontraste toda a razão da tua célere existência no mundo: seguir a filha do mar pelo trilho da luz, tornar-te, com ela, a espuma das ondas revoltas. E eis que a luz te invade, te desperta, te acorda. Não compreendes, que faz Níquel sentado ao teu lado, segurando um copo de água e um comprimido na mão, olhando cheio de pena para ti? Não morreste também? Que cheiro nauseabundo é esse que se depreende da tua roupa, que sabor a vómito é esse que tens na boca? Estás vivo, tão vivo que dói, tão vivo que cheiras mal e tens os intestinos revirados e agora sim, choras, abraçado a esse fiel amigo, agora sim tens olhos para chorar a tua dor. E hás-de chorar por muito tempo, até que te acalmes, que voltes para o teu país e tentes esquecer a Janice, a quem a pneumonia levou.
1 comentário:
deep... kero a quarta parte!!
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