Soncent

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terça-feira, 2 de setembro de 2008

Crónica da minha morte - extrato de um inédito antigo

Escrevi isto quando tinha 15 anos:

Adivinho o meu arcaboiço. Quem tiver o desprazer de ver os meus ossos a cru reparará numa pequena protuberância no meu crânio, mesmo no centro, atrás. O tal terceiro olho, que eu tenho bastante desenvolvido, a tal ponto que não me posso deitar de costas... E reparará nos meus dentes. Quanto tempo sobreviverão?

Que interessante seria eu própria olhar para o meu cadáver e depois para o meu esqueleto. Eu mesma a mexer no meu corpo, a abrir e a examinar cada bocado. Espreitar lá para dentro. Faria comentários do género “Então é por isso que sempre senti um caroço cá na perna” ou “Bem me parecia que o coração batia sempre do lado direito…”

O que seria possível se, depois de morrer, eu encarnasse numa outra pessoa, num médico legista e depois num coveiro qualquer que me desenterrasse. Só que isso não se adapta nada ao meu desejo de ser cremada. Esse desejo que talvez seja a principal prova da minha timidez e pudor. De que me vejam em estado de decomposição. Que triste. E que feio!

(...)

E já agora, como é que eu morreria? Velhinha, num Domingo, na cozinha de uma casa de campo? Não serei muito alta para ser simplesmente uma velhinha? Ou ninguém chega a “velhinha” com o tamanho original? Serei simplesmente vítima de um AVC ou terei uma morte mais aparatosa, do género de um acidente de avião? Ou vítima de um crime passional, numa rocambolesca trama digna de telenovela mexicana? Sim, porque de cancro e aos poucos é que não quero morrer. Ser uma heroína porque luto corajosamente contra a sida. Não. Talvez cair de asa delta do Monte Verde e encontrar uns seis ventos cada um com uma direcção... (...)

E quanto a testamento? Deixarei fortuna que depois levante confusão entre herdeiros ou tratarei de queimar qualquer dinheiro que tenha? Já me imagino velhinha, toda enrugada, levantando toda a minha fortuna com um sorrisinho malandro e dirigindo-me a um Casino ou a um cruzeiro de luxo, pronta para me submeter a todo o tipo de faustos, até que a fortuna acabasse. Nestes momentos, acho que o que se quer mesmo é poder-se, depois de morta, abrir um só olho para ver a cara dos herdeiros...

Uma outra forma conveniente de morrer é roubar uma boa quantidade de dinheiro, e sair por Africa a viajar, a conhecer, a desbaratar dinheiro a torto e a direito. Comer do bom e do melhor, hotéis, carros, savanas e safaris. E depois “dpôs de passá sab, morrê ca nada”. Podia ir para a cadeia já com uns metros de corda e fazer caput ou teimar em viver e passar o resto da vida a escrever livros sobre as viagens.

Depois vem aquela parte da curiosidade que eu tenho em relação à morte em si. Que é que acontece realmente? Há muitas versões, de gente que esteve quase, quase a esticar o pernil mas que voltou ao nosso mundo para contar que viram um túnel, mais iluminado que Paris. Outros afirmam ter estado a pairar por cima do próprio corpo, ai estendido numa cama como se estivessem num desses motéis com espelho no tecto. Há ainda uns vivos que afirmam captar vozes do além. Pois eu não sei e tendo a encarar estas coisas com um cepticismo talvez alimentado por algum medo. Mas a sério: que é feito da energia que nos habita, sabendo-se, como se sabe, que a energia nunca acaba, apenas se transforma?

(...)

Imagino que depois de morta, o meu cabelo se põe a crescer. Quem passar pelo cemitério ouvirá os gritos indignados e furiosos do meu espírito pelo facto do meu cabelo só crescer quando já morri.

E se o meu cabelo crescer, crescem-me também as unhas e o meu corpo, farto do ouvir os gritos do meu espírito, tenta cravar-lhe as enormes unhas sem no entanto conseguir, claro. Os meus dentes, a brilhar perigosamente e rangendo de ódio pelo meu espírito que me perturba a paz eterna. Podem até aparecer ladrões que me abrem a cova para roubar anéis, brincos ou os enfeites caros do caixão e se deparam com os meus dentes ali brilhando e resolvem tirar-mos para comercializá-los como “o novo marfim” ou lá o quê.

E eis que as minhas unhas se levantam, enormes, castanhas e duras e cravam-se no pescoço do profanador e tenho companhia para o eterno, amén. Então seremos dois a revoltarmo-nos quando vierem miúdos saltarem ou andarem de bicicleta sobre a nossa campa. Então aquela unha irá subir devagar e inexoravelmente até furar os pneus da maldita. E ouvir-se-ia uma gargalha cadavérica ecoar pelos ares e arrepiar todos os demais cadáveres que nos rodeiam fazendo levantar reclamações “Esse casal não se cala, parece que morreram de morte matada, antes eram guerras com o espírito, agora riem-se dos vivos que caem sobre nós…” e disparates outros que eu e o meu companheiro ignoraríamos.

E as sessões espíritas? Eu seria o terror de qualquer Centro de Racionalismo Cristão, o terror de qualquer mesa. Iria lá mandar recados malcriados, aos meus parentes, do género de se deixarem de preguiça e me irem tratar da campa e sugerir que me construíssem um mausoléu. Mas aí, quando fossem mudar as minhas ossadas, descobririam que eu rendera e me tornara em dois crânios, dois pares de fémures e tíbias, uma data de costelas e costeletas, duas bacias… uma francamente mais larga que a outra e pronto, estararia descoberto o mistério, “Esta mulher nem morta quis ficar sozinha!”

5 comentários:

Anónimo disse...

Cred Leen. Historia morbida!

Eileen Almeida Barbosa disse...

Eu sempre a achei divertida. Não foi minha intenção publicar nada mórbido. ... De resto, é tudo imaginação...

cristal disse...

História divertida e com um humor maduro de admirar numa jovem, tão jovem... Alguém me trouxe de Cabo Verde o teu Eileenistico e adorei. Como adorei conhecer este blog que vai ficar nas minhas visitas frequentes

Anónimo disse...

com apenas 15 aninhos? wow

Eileen Almeida Barbosa disse...

Muito obrigada, Cristal, dá-me sempre um prazer indescrítivel saber que alguém gostou do meu livro e do meu blog! Continue também com o seu e venha visitar sempre!