Soncent

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sexta-feira, 13 de março de 2009

A espia rasta-fari - extracto de um inédito

Disse-lhe que não o queria a chorar, como se isso só dependesse da vontade dele e não de todo o peso que lhe caíra em cima. Só lhe restava, respondeu-lhe ele, nesses dias de inglória, sentar-se ao pé do músico que compunha canções com um instrumento de cordas muito esquisito e chorar. Só lhe restava chorar e era o que pensava fazer até ao fim dos seus dias. Queria matar-se pela perda de sal.

Ela olhou para ele com semi-tristeza, como se acreditasse nele mas não se importasse mesmo, mesmo. E ele sentiu-se ainda mais acabrunhado, mais vítima do maior desconsolo da vida. E então, ele que já não via bem, que andava com os olhos inchados como duas goiabas amargas, viu ainda menos na névoa que lhe desceu sobre a vista, sobre o corpo, sobre o seu ser.

Estava condenado e nenhum milagre seria de esperar. Não a viu, portanto, abaixar-se para agarrar na adaga que jazia por terra e atravessar com ela o pescoço do músico. Só soube que a música parara de repente, que um ruído surdo precedeu o do instrumento que caía, e deu-se conta, em menos de um instante, que ela era afinal a tal espiã de que tanto ouvira falar.

O seu coração já fraco falhou uma batida e o ar faltou-lhe e o tempo suspenso desfez-se no ar, o próprio ar rarefazendo-se nesse instante, de tal forma que mesmo ela sentiu falta de ar e hesitou, antes de também a ele, passar-lhe adaga ainda molhada de um sangue que não o seu.

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