Fomos muitos os que não compreendemos o discurso. Mas lá ficámos especados, como cabras a olhar para um palácio.
O próprio orador falou depois num desfasamento gritante
entre a ideia que ele queria passar e o que nós depreendemos da sua enervada
oratória, rica em perdigotos que vieram pousar na primeira fila de cadeiras.
Felizmente, nós não lá estávamos, essas são as cadeiras reservadas aos
doutores. E nós limitávamo-nos a ser estudantes universitários, que
desembolsaram vinte e cinco euros para ir ver e ouvir uma série de engravatados
ler uns quantos papéis, de cima do estrado.
Uma ou duas vezes por mês, o mesmo ritual de entrar para
o anfiteatro e escolher as cadeiras. Eu e a Zoraima, procurando ficar perto do
palco, para podermos ler as projecções. Os rapazes de Gestão Hoteleira
sentavam-se atrás das raparigas do primeiro ano. As suculentas caloiras.
Desta vez, o orador também reparou nessa suculência, pois
durante o primeiro intervalo, foi meter conversa com as miúdas. Foi triste, eu
e a Zoraima comentámos, o modo como ele tentava compor o seu melhor sorriso e
adoptava uma postura mais jovem, uma mão no bolso, a outra a passar
repetidamente pelo cabelo, como quem dizia “Sou de meia-idade, mas reparem-me
nesta farta cabeleira!”. E elas, enrubescidas, balbuciando asneiras do género
de estarem a adorar o seminário e de ser muito elucidativo e ser uma honra
recebê-lo na nossa escola…
No segundo intervalo, já eles se sentavam todos juntos, o
orador e cinco caloirinhas, nenhuma delas com mais de vinte anos.
À hora do almoço, toda a gente abandonando o anfiteatro à
pressa, elas a atrasarem-se e eu e a Zoraima, espertas que somos,
atrasávamo-nos também. Bem queríamos ver em que era que aquilo iria dar. Quando
ele deu por arrumados todos os papéis sobre a mesa e até o arranjo de flores,
dando tempo a que todos se retirassem, estávamos eu, a Zoraima, ele e as
caloiras. Nós fingíamos estar à procura de um brinco, as outras estavam todas
entretidas com os telemóveis de cores vivas. Ele aproximou-se-lhes e indagou
num tom paternal:
- Então, moças, ainda não vão almoçar? – Ficou lá parado
à espera e depois olhou para nós. A Zoraima encontrara por fim o brinco
virtual. – E vocês, também ainda cá estão? – Sempre detestei esse tipo de
perguntas, vê-se alguém com um livro na mão e pergunta-se “Que estás a fazer?”
ou chega-se a casa, e alguém diz-nos logo “Já chegaste?”. De maneira que olhei
para ele com a dita cara da cabra a olhar para o palácio e disse-lhe:
- Sabe, deve ser culpa minha, mas não alcancei todo o sentido
da sua intervenção. Perguntava-me se não quereria acompanhar-nos durante o
almoço e elucidar-nos melhor… – fiz o meu sorrisinho angélico com que
geralmente cumprimento a minha senhoria.
Ele então, com um sorriso pesaroso:
- Não queria maçar-vos com isso…
- Não maça nada, será um prazer! – A Zoraima entrara no
meu jogo. As caloiras é que pareciam estar a detestar o rumo das coisas. Lá
acabámos por nos encaminhar para a cantina da escola mas o pobre homem era
alérgico a marisco e não poderia lá almoçar. Fizemo-nos tão desapontadas que
ele se viu obrigado a convidar-nos, às sete, para almoçar com ele num
restaurante ao pé da escola. Tentámos pedir pratos baratos e meias doses, mas
resolvi não o poupar e pedi vinho. Bem merecia, o pedófilo!
Não valeu de grande coisa, afinal. Ao fim da tarde,
quando o seminário acabou, dei-me conta de que acabara mesmo por lá deixar
esquecido o casaco. Quando entrei, distingui, lá em cima do palco, o orador,
agarrado à mais bonita das caloiras. Que se ria feito uma pomba, a inocente.
Saí discretamente, morrendo de raiva. De facto, havia um grande desfasamento
entre a figura de um orador responsável e a do homem sob essa lustrosa capa. A
do homem a quem, a ser realmente conhecido, ninguém passaria diplomas ou daria um
canudo.
Abril 2003
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