Soncent

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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Anfiteatro


Fomos muitos os que não compreendemos o discurso. Mas lá ficámos especados, como cabras a olhar para um palácio.

O próprio orador falou depois num desfasamento gritante entre a ideia que ele queria passar e o que nós depreendemos da sua enervada oratória, rica em perdigotos que vieram pousar na primeira fila de cadeiras. Felizmente, nós não lá estávamos, essas são as cadeiras reservadas aos doutores. E nós limitávamo-nos a ser estudantes universitários, que desembolsaram vinte e cinco euros para ir ver e ouvir uma série de engravatados ler uns quantos papéis, de cima do estrado.

Uma ou duas vezes por mês, o mesmo ritual de entrar para o anfiteatro e escolher as cadeiras. Eu e a Zoraima, procurando ficar perto do palco, para podermos ler as projecções. Os rapazes de Gestão Hoteleira sentavam-se atrás das raparigas do primeiro ano. As suculentas caloiras.

Desta vez, o orador também reparou nessa suculência, pois durante o primeiro intervalo, foi meter conversa com as miúdas. Foi triste, eu e a Zoraima comentámos, o modo como ele tentava compor o seu melhor sorriso e adoptava uma postura mais jovem, uma mão no bolso, a outra a passar repetidamente pelo cabelo, como quem dizia “Sou de meia-idade, mas reparem-me nesta farta cabeleira!”. E elas, enrubescidas, balbuciando asneiras do género de estarem a adorar o seminário e de ser muito elucidativo e ser uma honra recebê-lo na nossa escola…
No segundo intervalo, já eles se sentavam todos juntos, o orador e cinco caloirinhas, nenhuma delas com mais de vinte anos.
À hora do almoço, toda a gente abandonando o anfiteatro à pressa, elas a atrasarem-se e eu e a Zoraima, espertas que somos, atrasávamo-nos também. Bem queríamos ver em que era que aquilo iria dar. Quando ele deu por arrumados todos os papéis sobre a mesa e até o arranjo de flores, dando tempo a que todos se retirassem, estávamos eu, a Zoraima, ele e as caloiras. Nós fingíamos estar à procura de um brinco, as outras estavam todas entretidas com os telemóveis de cores vivas. Ele aproximou-se-lhes e indagou num tom paternal:

- Então, moças, ainda não vão almoçar? – Ficou lá parado à espera e depois olhou para nós. A Zoraima encontrara por fim o brinco virtual. – E vocês, também ainda cá estão? – Sempre detestei esse tipo de perguntas, vê-se alguém com um livro na mão e pergunta-se “Que estás a fazer?” ou chega-se a casa, e alguém diz-nos logo “Já chegaste?”. De maneira que olhei para ele com a dita cara da cabra a olhar para o palácio e disse-lhe:

- Sabe, deve ser culpa minha, mas não alcancei todo o sentido da sua intervenção. Perguntava-me se não quereria acompanhar-nos durante o almoço e elucidar-nos melhor… – fiz o meu sorrisinho angélico com que geralmente cumprimento a minha senhoria.

Ele então, com um sorriso pesaroso:
- Não queria maçar-vos com isso…

- Não maça nada, será um prazer! – A Zoraima entrara no meu jogo. As caloiras é que pareciam estar a detestar o rumo das coisas. Lá acabámos por nos encaminhar para a cantina da escola mas o pobre homem era alérgico a marisco e não poderia lá almoçar. Fizemo-nos tão desapontadas que ele se viu obrigado a convidar-nos, às sete, para almoçar com ele num restaurante ao pé da escola. Tentámos pedir pratos baratos e meias doses, mas resolvi não o poupar e pedi vinho. Bem merecia, o pedófilo!

Não valeu de grande coisa, afinal. Ao fim da tarde, quando o seminário acabou, dei-me conta de que acabara mesmo por lá deixar esquecido o casaco. Quando entrei, distingui, lá em cima do palco, o orador, agarrado à mais bonita das caloiras. Que se ria feito uma pomba, a inocente. Saí discretamente, morrendo de raiva. De facto, havia um grande desfasamento entre a figura de um orador responsável e a do homem sob essa lustrosa capa. A do homem a quem, a ser realmente conhecido, ninguém passaria diplomas ou daria um canudo.


Abril 2003



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