Soncent

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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Cânticos de uma velha



 
Trinta anos se terão passado e embora me lembre agora menos vezes, a emoção parece ser a mesma. Não doerá igual, mas dói nas mesmas zonas. E ainda dói é no peito e ainda choro pelos olhos e ainda sinto a tua falta no mesmo sítio: ao meu lado.
 Tenho-me perguntado todos estes anos como é possível amarmos tanto assim alguém a quem deixámos de admirar. Tenho ficado mais velha, mais sábia, mais meiga e calma, mas ainda não sei como. Às vezes penso que fiz bem em deixar-te, noutras penso que só ao teu lado teria encontrado uma vida preenchida no seu todo.
Agora sinto-me tão velha que, quando me sento debaixo de uma árvore e fecho os olhos, imagino que quando os abrir, te encontrarei, não velho como eu, mas ainda jovem e forte, e sábio, com a sabedoria de 100 anos e que me estenderás a mão.
Mas como não me consigo levantar logo,  pegas-me ao colo, embalas-me mansamente, como se não fosse eu uma velha mas um bebé, a quem amas acima de tudo. Queria transformar-me num bebé e não crescer nunca, para que fosse sempre o teu bebé. O teu amor imaculado.

 Inventei uma série de cânticos meio senis, uma série de rituais de adoração, com que me ocupo quando a vida me deixa. Lembras-te do oboé? Lembras-te de mim? Sinto-me como uma ilha que viu um dia surgir um naufrago e o amparou. Deu-lhe comida, água doce, madeira para uma cabana e pores-do-sol para os seus sonhos. E foi abandonada sem um único olhar, quando apareceu uma jangada. Sinto-me como essa jangada, quando apareceu um bote. Sinto-me como esse bote, quando apareceu um cargueiro. Sinto-me como um cargueiro, quando pisaste terra firme. Eu queria ser terra firme.  

Queria ser terra firme, a tua certeza, o teu bem mais importante. Queria que nunca tivesses desistido de mim como não desistimos nunca de comer, de respirar, a não ser quando desistimos de viver.

 

 

9 de Junho de 2006

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