Soncent

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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O homem hibernado

Há imenso tempo que não trabalhava. Tomava o seu tempo a escolher a camisa, a gravata, a engraxar os sapatos. Metia-se no carro, abria as janelas, cheirava o ar à procura de terra molhada ou de rosas em flor. Conduzia devagar, a música no rádio subindo para um jazz animado, descendo para um blues relaxante. Estacionava o bólide com cuidados de profissional, punha a sombra no pára-brisas e entrava no escritório, cumprimentando toda a gente com um sorriso e um bom-dia animador. Enchia um copo de água assim que entrava no seu gabinete e ligava o computador. E não fazia nenhum o resto do dia.

Lia os jornais online, lia os blogs, comentava num ou noutro, via a previsão do tempo, lia as revistas estrangeiras. Estava tão informado acerca dos conflitos em Bagdad, como da saúde de Castro e da economia japonesa. Telefonava a amigos e conhecidos, só para saber das suas vidas.

De vez em quando, a secretária batia-lhe à porta e ele se assustava, fechava um jogo e punha a página dos e-mails, muitos, imensos por ler, por responder e olhava para ela com cara de um rato apanhado. Ela ignorava-o, olhava para o lado, deixava-lhe as cartas, os despachos, que ela sabia que ficariam a apanhar pó na mesa, até que ela os vinha recolher outra vez, os despachava sozinha, imitando perfeitamente a assinatura dele. Há vários meses que o fazia, era ela quem geria a empresa. Defendia-o quando os empregados comentavam a sua distracção, a sua ausência.

Há imenso tempo que ele não ia ao gabinete de cada um, perguntar como iam as coisas, exigir pressa, exigir qualidade. Ele comia no gabinete, bebia no gabinete e esperava até toda a gente ter saído para finalmente abandonar a sua toca, sair de cabeça erguida, outra vez fingindo, desejando boa tarde ao guarda e entrando no carro, que entretanto fora lavado e polido, para ir, cotovelo fora da janela, conduzindo devagar para casa. Há meses que não aparecia no ténis, deixou de ir aos almoços da família aos sábados. Que faria em casa?

Chegava a casa, descalçava-se à porta, ia despindo-se à medida que atravessava os corredores, chegava à sala da televisão, ligava-a, deixava-se absorver pelas séries, cinquenta minutos cada, vinha a publicidade e logo começava outra, ele alheado, seguindo a trama com a parte da frente da testa mas a dormir debaixo do escalpe, atropelado pela realidade, absorto, hibernado. Até um dia, talvez.

Ela chegava antes dele, abria o computador dele, lia os e-mails dele, os mais urgentes, ela encaminhava-os para o próprio e-mail, outros, ela respondia-os do computador dele, enchia-lhe o copo de água, deitava-lhe duas gotas certinhas e do mesmo tamanho do produto, o suficiente apenas para o ter assim, zonzo, perdido, a dormir acordado.

Ana chegava às nove, nunca se cruzava com o patrão. Ia logo ver a desarrumação da sala da televisão, sacudia os tapetes, abria a janela para arejar, compunha as almofadas, levava os pratos sujos para a cozinha. Aqui, abria o frigorífico, escolhia os ingredientes para o jantar e na jarra de sumo de tomate, o preferido o patrão, ela deixava cair uma gotinha, certinha, para o espicaçar. Um dia, quando ele viesse mais cedo e a encontrasse, ele não resistiria ao seu encanto, ao seu perfume, ao seu longo cabelo entrançado.

(...)

11 de Agosto de 2010

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