Soncent

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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O casal que já não queria morrer

 
Gosto muito deste meu contito de hoje, para além de que arranjei forma de nele meter uma das minhas personagens preferidas, a Burguesa, aqui a desempenhar um cameo. Aproveito ainda  a oportunidade para agradecer a oportunidade de regressar a um tema que sempre me atraiu, em termos de escrita, que é a morte. Esta, muito oportunista.

A Burguesa, a quem mal conheci mas que adorei, contou-nos que eles – o casal – tinham decidido que viveriam juntos e morreriam juntos aos sessenta e nove, porque assim poupariam uma verdadeira fortuna. Com as doenças, com a saúde, com empregados que tomassem conta deles. E com o dinheiro poupado, poderiam então gozar bem os últimos anos. Viver à francesa.

- A mulher dele tinha dois anos a menos mas não se importava de morrer junto com ele. Isso, disse ela no início, porque depois de falar com a filha, veio com uma história de, por ser mais nova, ter direito a gastar um pouco mais. Nunca percebi como foi que a filha lhe terá metido estas ideias na cabeça, em vez de a convencer a deixar-se morrer naturalmente, como toda a gente, aliás. Ele não concordou, claro, e contou-me nesse dia que com falinhas mansas e jeitinhos que só ele conseguia, foi fazendo ver à mulher que isso sequer fazia muito sentido. Enfim, lá ela concordou, a velhota, que nem era parva e gostava do seu Marçou. O senhor era francês. Aliás como se vê pelo nome e gostava dela tanto que se veio embora e não voltou mais para a sua terra.


No dia em que deveriam morrer, ele é que acordou melancólico e andou a arranjar coragem para dizer à Margô – que na verdade fora registada como Margareth, mas queria à força ser francesa também – que se sentia melancólico demais para morrer e que tal se adiassem para o dia seguinte. Nisso a Margô teve o seu instante de lucidez, porque respondeu logo – Se começamos a adiar, nunca mais paramos e nunca mais morremos – ao que o Marçou respondeu – Isso é que era bom – e a Margô disse logo – Mas já não temos dinheiro que dê para vivermos para sempre.

Mas com o tal jeitinho, ele convenceu-a a adiar a morte por um dia. Mas no dia seguinte começaram os cinco episódios de uma série que ela sempre tinha querido ver: quis adiar por uma semana. Era patético, mas era verdade: estavam ambos a agarrar-se a mais uns dias, a adiar a partida. E surpreendiam-se um ao outro a partilhar os mesmos pensamentos: que morrer por morrer, por que não esperar mais um bocadinho. E assim foram fazendo. Adiando primeiro por uma semana, depois por duas, e logo, por dois meses, enquanto durasse a Primavera. Depois, foi o advogado, novo e bonitão, que lhes disse que não havia mais dinheiro para continuarem vivos – e corrigiu-se logo – para continuaram nas mesmas condições – a viveram num aparthotel, a manterem duas empregadas. Despediram logo a Maísa, coitada, que não sabia o que mais fazer na vida, que trabalhar para o casal. Depois, deram o gato, Matilde. Começaram a procurar um outro aparthotel mais barato.

E foram descendo os escalões da boa vida, trocando os luxos a que se tinham acostumado, por coisinhas mais baratas. Fosse no comer, fosse nas diversões. E depois baixaram o nível a um aspecto tão caro aos dois: ao enterro. Abriram mão da escultura de pedra polida, do mausóleu formidável, dos cantinhos de inox, dos caixões enormes e ultrapolidos. Esse dinheiro foi sendo desviado para as contas da semana, os chocolates dietéticos, o frango estufado com cenouras mirins.

Começaram a andar imenso a pé, já sem se lembrar se era para poupar dinheiro ou pela saúde. Aproveitavam todas as oportunidades que havia para gente idosa: teatros de graça, concertos, filmes e livros da Biblioteca Municipal. Um som de um pássaro ou o brilho da espuma da loiça tinham um encanto especial. Apaixonaram-se pela vida.

Morrer passara a ser um sonho. Um sonho mau que os perseguia com umas miasmas de doença. Recorriam a vitaminas, cálcio, chás e argilas, pesquisavam revistas e sites sobre saúde e longevidade. Se dependesse deles, não morreriam nunca.



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